Insegurança nas relações jurídicas de Direito Privado na pandemia
Por Igor Sa Gille Wolkoff e Guilherme Neuenschwander Figueiredo
Em virtude da atual pandemia de coronavírus cresce a preocupação não só com relação ao mercado econômico em si, mas também nas relações dele decorrentes que geram cotidianamente diversos negócios jurídicos que precisam ser preservados ante a letargia imposta pela Covid-19 nas relações comerciais e negociais
Frente a essa instabilidade e incerteza para salvaguardar as relações jurídicas notadamente de Direito Privado e com isso fomentar os negócios jurídicos que acabam por gerar riqueza e movimentar a economia de mercado, o Governo Federal editou a Lei 14.010, de 10 de junho de 2020, a qual dispões justamente sobre o Regimento Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período de pandemia do coronavírus.
Referida Lei transita por diversos assuntos que foram gerando certo desconforto ao longo de período de incerteza que esta se vivendo nos dias atuais, tratando desde a prescrição até questões de direito de família e sucessões, e já deixando claro que a suspensão da aplicação das normas tratadas não implica em revogação ou alteração.
Muito pelo contrário, a legislação ora comentada deixa claro que se trata de medida temporária, e não permanente, com objetivo excepcional de suspender dispositivos legais que, à princípio, podem ser obstáculos às relações jurídicas de Direito Privado em vista do caos econômico vivenciado nos atos negociais.
Pois bem, inicialmente, já delimita-se que os prazos prescricionais estão impedidos ou suspensos a partir de 10 de junho de 2020 (data de vigência da Lei 14.010/2020) até 30 de outubro de 2020, sendo importante mencionar que tal determinação não se aplica enquanto perdurar as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstos em lei.
Ou seja, não se aplica a Lei em comento quando estiver em curso quaisquer das causas de impedimento, suspensão ou interrupção expressas nos artigos 197 à 204 do Código Civil ao passo que de forma expressa aplica-se para os casos de decadência.
Dessa forma, percebe-se que o legislador tinha como fim salvaguardar notadamente os interesses dos credores de obrigações jurídicas, pois nesse período em que até mesmo o judiciário foi afetado e que grande parte de atos presenciais, judiciais ou extrajudiciais, tornaram-se mais difíceis nada mais salutar do que “parar” com o transcurso dos prazos que garantiriam aos credores seus créditos.
Em continuidade, como é de conhecimento em associações em geral, as assembleias gerais são convocadas de forma presencial para as deliberações das quais são competentes (destituir administradores e alterar o estatuto). Dessa forma, visando dar continuidade à tão necessária atividade das associações, a legislação ora noticiada possibilita que as assembleias poderão ocorrer por meio eletrônico, mesmo não havendo previsão no estatuto social, bem como os participantes poderá manifestar-se da mesma forma assegurando-se sua identificação e o voto, equiparando-se ao ato presencial.
Ainda com relação a assembleias, agora tratando dos condomínios edilícios, a lei trouxe a mesma possibilidade das associações. Poderão ocorrer assim como as votações por meio virtual, em caráter emergencial, equiparando a manifestação virtual do condômino à assinatura presencial. Mas ainda, na impossibilidade da realização das assembleias de forma telepresencial, faculta a prorrogação dos mandatos dos síndicos até 30 de outubro de 2020.
Com relação às relações de consumo, a Lei sobre o Regimento Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado apenas tratou da faculdade do consumidor em desistir do produto adquirido fora do estabelecimento comercial, justamente em decorrência do aumento significativo das compras por telefone e aplicativos para entrega diretamente nas residências.
Mas a suspensão do direito de arrependimento pelo prazo de sete dias, prevista no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, apenas é cabível nas entregas domiciliares de produtos perecíveis ou de consumo imediato e ainda de medicamentos. É importante realçar nesse momento que a suspensão desse benefício ao consumidor não impede o arrependimento em casos de vícios do produto, momento em que pode sim haver a devolução do produto adquirido mesmo sendo perecível, por exemplo.
Para se ter uma noção da diversidade da lei, em seu artigo 10, contemplou a suspensão dos prazos para aquisição de propriedades imobiliárias ou mobiliárias, nas diversas modalidades de usucapião. Bem assim, também adentrou na seara dos crimes e infrações à ordem econômica.
Nesse sentido, dispôs que, enquanto perdurar o estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto nº 06, em 20 de março de 2020, não se aplica como crime à ordem econômica a venda de mercadorias ou serviços abaixo do preço de custo e a cessão parcial ou total das atividades empresarias, ambos sem justo motivo, devendo o órgão competente para apreciar as demais infrações da Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência considerando as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia de coronavirus.
Por fim, porém não menos importante, trata a legislação em apreço da prisão civil por dívida alimentícia e das sucessões, determinando que naquela situação a prisão dar-se-á apenas na modalidade domiciliar e nesta o prazo para sucessões abertas (falecimento do autor da herança) a partir de 1 de fevereiro terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020 e nos processos de inventário e partilha iniciados antes de 01 de fevereiro estarão suspensos de 10 de junho até 30 de outubro de 2020.
Verifica-se nesses casos envolvendo direito de família a intenção do legislador é de manter o distanciamento social visando justamente diminuir ou mitigar o contágio do Covid-19.
Salienta-se, por fim, que a Presidência da República vetou dispositivos nucleares do texto legal, impactando de maneira significativa no sentido da norma, especialmente a respeito do artigo 9º, o qual suspendia a concessão liminar de para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo até 30 de outubro de 2020, previsão adotada em diversos países ocidentais para o enfrentamento da Covid-19, como exemplo, na Itália, através do artigo 103, parágrafo 6º do decreto-lei de 17 de março de 2020, n. 18 (chamada “Cura Itália”).
Igor Sa Gille Wolkoff é advogado atuante nas áreas trabalhista e empresarial e sócio da Advocacia Castro Neves Dal Mas coordenando a Unidade de Campinas. Possui especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Cândido Mendes e MBA em Direito Empresarial pela FGV.
Guilherme Neuenschwander Figueiredo é advogado atuante na área trabalhista e sócio da Advocacia Castro Neves Dal Mas coordenando a Unidade de Belo Horizonte. Possui especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie e é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autonôma de Lisboa “Luis de Camões”.
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