por Guilherme Neuenschwander Figueiredo e Igor Sa Gille Wolkoff

O Ministério do Trabalho e Previdência publicou, no dia 1º de novembro, a Portaria MTP nº 620, proibindo que as empresas, no ato do processo seletivo ou na manutenção do emprego, exijam o comprovante de vacinação para COVID-19, por considera a exigência discriminatória. E vai além, ao prever como ato discriminatório a aplicação de justa causa ao trabalhador recalcitrante, deixando claro que, para o empregado demitido, além dos danos morais, cabe-lhe a indenização e reintegração ao emprego.

Na prática, as novas orientações causam insegurança jurídica, ainda mais quando parte significativa da iniciativa privada buscava endossar as orientações da comunidade científica a respeito da importância da vacinação e de se adotarem medidas coercitivas ao trabalhador que se recusa à vacinação ou até mesmo ao candidato ao emprego.

Na contramão de todo o processo de enfrentamento à pandemia, o Ministério do Trabalho e Previdência demorou mais de 08 (oito) meses do início da vacinação pelo SNI para, somente agora, motivados por uma possível retórica diversionista, empenhar-se na formulação de um ato ilegal 1.

Enquanto isso, relembre-se a atuação do Ministério Público do Trabalho sobre a vacinação e suas repercussões no meio ambiente laboral, sobretudo para reconhecer a licitude de uma eventual aplicação de justa causa para rescisão contratual ao empregado insubordinado (Guia Técnico Interno do MPT sobre Vacinação da Covid-19).

De modo igual, a Justiça do Trabalho proferiu importantes decisões a respeito da validade da Justa Causa como modalidade de rescisão do contrato de trabalho aos trabalhadores relutantes à vacina.

Era razoavelmente pacífico até então defender que as medidas restritivas ao livre arbítrio do trabalhador refletiam o bem comum, derivado de um pacto civilizatório de proteção de uma coletividade de trabalhadores e de proteção da saúde e vida humana; inteligência do artigo 7º da Constituição, segundo a qual são direitos dos trabalhadores, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (artigo 7º, XXII, da Constituição Federal). Era a expressão derivada de uma valiosa e histórica contribuição da imunização coletiva pelas diversas vacinas aplicadas no País, todas elas testadas e aprovadas, de maneira eficaz e segura para a população.

Agora, com a publicação da citada Portaria, a situação jurídica volta os olhos para o lado da liberdade individual em detrimento da saúde coletiva. Malgrado a presunção de legitimidade do ato administrativo, a Portaria ministerial está imbuída em ativismo legislativo sem precedente, pois nitidamente ultrapassa a sua competência normativa e os limites constitucionais a que está vinculado o Poder executivo, nos termos do artigo 59 e 61 da CLT.

No cerne da questão, a conduta empresarial voltada a exigir a vacinação dos trabalhadores é tipificado, pela Portaria, como “ato discriminatório”, semelhante a tantos outros atos hostis à dignidade da pessoa humana, tal como exigir teste de HIV para contratação de empregados, situação nitidamente preconceituosa e digna de censura.

A tipificação adotada pela norma jurídica representa uma verdadeira antinomia, um padrão contraditório dentro do próprio sistema jurídico de proteção da saúde do trabalhador, sobretudo se compararmos com outras normas, não revogadas, dotadas de conteúdo similar sobre o comprovante de vacinação no contexto do contrato de trabalho.

Há uma falta de coerência no novo texto normativo com a NR-32, vigente no ordenamento jurídico, pelo qual cria uma obrigação aos empregados da área de saúde para com a vacinação. Igualmente com o texto da Portaria 597/2004 do Ministério da Saúde, segundo o qual para: “efeito de contratação trabalhista, as instituições públicas e privadas deverão exigir a apresentação do comprovante de vacinação (…)”. E ainda o caso da Portaria 1.986/2001, do Ministério da Saúde, que exige o comprovante da vacinação de algumas categorias profissionais, como trabalhadores das áreas portuárias e aeroportuárias ou tripulantes e pessoal dos meios de transportes.

Bem assim, falta-lhe coerência interna, entre os próprios dispositivos da Portaria. Ora, enquanto o artigo 1º, parágrafo primeiro, proíbe ao empregador cobrar o atestado de vacinação, de outro lado, o artigo 3º, caput, permite ao empregador obrigar os empregados à testagem. Fica a pergunta: se é lícito proibir o comprovante de vacina, por qual razão obrigar a testagem dos empregados seria uma prática lícita e não discriminatória para o Ministério do Trabalho?

A realidade é que a exigência do cartão de vacinação nunca foi vista pelo sistema jurídico como um ato discriminatório, infenso ao bem comum, pelo contrário, sempre refletiu uma ação positiva do empregador voltada à promoção da saúde no meio ambiente laboral. É a própria vontade da lei de enfretamento da pandemia, segundo a qual algumas medidas coercitivas em favor da vacinação podem ser adotadas pela iniciativa pública e privada (Lei 13.979/20).

Essas medidas coercitivas foram objeto de ampla discussão no Supremo Tribunal Federal. Cita-se o precedente da decisão do Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento do ADI 6586, ao apreciar o direito da Federação, Estados e Municípios estabelecerem diretrizes sanitárias para efeito de implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes.

Pondera o Ministro que, atendidos os pressupostos de segurança e eficácia das vacinas, mostra-se possível restringir a autonomia individual das pessoas com o fito de cumprir o dever de dar concreção ao direito social à saúde, previsto no art. 196 da Lei Maior, fazendo-o por meio de “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Outro precedente judicial importante diz respeito à suspensão de liminar que proibia a Prefeitura do Rio de Janeiro a condicionar o acesso a estabelecimento e locais de uso coletivo destinadas a atividades de lazer à comprovação da vacinação contra a Covid-19, com base no calendário vacinal previsto. Para o Supremo, o ato normativo da Prefeitura era necessário para a contenção da disseminação da COVID-19, amparados em dados técnicos e científicos, “inexistindo patente desproporcionalidade ou irrazoabilidade em seu conteúdo”, e a iniciativa de bloqueio dessas medidas contribui “para a disseminação do vírus e retardando a imunização coletiva pelo desestímulo à vacinação” (Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória 824 Rio de Janeiro).

Dito isso, torna-se inegável a falta de harmonia da nova Portaria para com o sistema jurídico e sua hermenêutica. O valor do texto constitucional se sobrepõe indiscutivelmente a uma tentativa em vão de “criminalizar” o ato de proteção coletiva. Não existe nenhuma alternativa ao empregador senão envidar esforços no sentido de mitigar os efeitos da pandemia, garantindo o direito à saúde e segurança no trabalho, máxime da eficácia horizontal dos direitos fundamentais às relações privadas.

As vicissitudes de uma postura proativa dos empregadores são proporcionais aos fins a que se destinam, portanto, é lícito ao empregador exigir o comprovante de vacina na fase pré-contratual e contratual, inclusive para efeito de aplicação da justa causa como uma pena máxima aos recalcitrantes.

O próprio STF entende pela ilegalidade do ato normativo, em decisão liminar do Ministro Luíz Roberto Barroso, nos autos das ADPFs 898, 900, 901 e 905, ao ressaltar:

“Cabe, portanto, ao empregador, à luz de sua estratégia de negócios e das suas circunstâncias empresariais, decidir a quem contratar, desde que seus critérios não sejam discriminatórios ou desproporcionais(…). Não há comparação possível entre a exigência de vacinação contra a COVID-19 e a discriminação por sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade ou gravidez. “

E, ainda, ressaltou o Ministro, “que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade da vacinação compulsória, por meio da adoção de medidas indutivas indiretas, como restrição de atividades e de acesso a estabelecimentos (…). E tais, decisões, afirmou que os direitos individuais devem ceder diante do interesse da coletividade como um todo no sentido da proteção ao direito à vida e à saúde”.

Agora, cabe ao plenário do Supremo Tribunal Federal convalidar a decisão, e ao final, afastar os vícios instransponíveis do ato normativo questionado, especialmente no contexto da validade e eficácia da norma, proporcionando aos empregadores a segurança jurídica necessária para enfrentamento da pandemia.

Autores:
Guilherme Neuenschwander Figueiredo é advogado atuante na área trabalhista e sócio da Advocacia Castro Neves Dal Mas coordenando a Unidade de Belo Horizonte. Possui especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie, Doutorando e é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa “Luis de Camões”.
E-mail: guilherme@castroneves.com.br

Igor Sa Gille Wolkoff é advogado atuante nas áreas trabalhista e empresarial e sócio da Advocacia Castro Neves Dal Mas coordenando a Unidade de Campinas. Possui especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Cândido Mendes e MBA em Direito Empresarial pela FGV, sendo que atualmente cursa Especialização em Direito Societário pela EBRADI/ESA
E-mail: igor@castroneves.com.br