ANPD: Das implicações da sua criação à sua transformação em autarquia

Por Álvaro Felix da Silva

Com os avanços tecnológicos, a necessidade jurídica de promover uma maior segurança ao usuário da internet e das ferramentas digitais tornou-se uma questão a ser sanada pelo judiciário brasileiro. Foi neste contexto que em 23 de abril de 2014, foi publicada a lei 12.965 do Marco Civil da Internet, que é a norma legal que regulamenta o uso da Internet no Brasil por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para quem faz uso da rede, bem como da determinação de diretrizes para a atuação do Estado.

Desde então, as transformações digitais foram ganhando cada vez mais espaço. A tecnologia foi se mostrando veloz, e reverberando em inovações tanto positivas quanto negativas nas mais diversas searas da sociedade, e o Direito – enquanto ciência social aplicada, foi obrigado a se moldar de modo a acompanhar as demandas de segurança que surgiram com tantas inovações, implementando novos textos e determinações legais visando suprimir a insuficiência normativa iminente. Tais demandas originaram a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que nada mais é do que uma legislação brasileira que determina as diretrizes das atividades de tratamento de dados pessoais, sendo responsável também pela alteração dos artigos 7º e 16º do Marco Civil da Internet.

Em 2018, ano de publicação da LGPD – lei 13.709, o Brasil havia registrado perdas progressivas com crimes virtuais, chegando a R$ 10 bilhões por ano, segundo uma pesquisa realizada pela McAfee e publicada na revista Veja. Tamanho número, representava uma crescente evolução dos cibercrimes, e pior, denotava a insuficiência normativa até então vigente, na promoção da segurança virtual.

Desde a sua publicação até os dias atuais, uma série de debates e embates surgiram acerca da aplicação prática da LGPD, e da forma como seria assegurada a sua observância no tocante a situações cotidianas, outrora comuns, mas que agora passariam a configurar conduta ilícita tipificada pelos artigos desta norma.

Visando assegurar a aplicação da LGPD, em dezembro de 2018 criou-se a ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que foi sancionada em julho de 2019, pela lei 13.853. A ANPD é um órgão da administração pública direta federal do Brasil que faz parte da Presidência da República e que possui atribuições relacionadas à fiscalização do cumprimento da Lei nº 13.709/2018 – LGPD.

Composta por um conselho diretor de 5 membros não remunerados, a ANPD é formada por pessoas indicadas pelo Poder Executivo e aprovadas pelo Senado. Possui também outros servidores os quais estão divididos entre sociedade civil, instituições científicas, setor produtivo, Senado, Câmara dos deputados e Ministério Público, por empresários e trabalhadores, sendo caracterizada por um corpo funcional bem misto, e democrático.

No início da sua criação, a ANPD era um órgão independente, contudo vinculado ao Poder Executivo do Governo Federal. Além das atribuições fiscalizatórias, a ANPD também possui função de orientar acerca do método pelo qual a LGPD precisa ser aplicada, divulgando diretrizes de como toda a informação pessoal e dados pessoais que circulam e são utilizados pelas empresas devem ser tratados, garantindo assim, a aplicação correta da LGPD. Em consonância às suas atribuições, a autoridade nacional também é responsável pela divulgação de informações sobre as políticas de proteção aos dados, e as práticas e os direitos sobre os dados que a população possui.

No dia 14 de junho de 2022, foi publicada uma Medida Provisória que transformou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados em uma autarquia federal. Insta frisar que essa transformação no tipo jurídico da ANPD já estava prevista pela Lei Geral de Proteção de Dados em seu artigo 55-A, que a posteriori teve sua redação reformulada pela MP supracitada, de nº 1.124.

Com a transformação da autoridade nacional em autarquia de natureza especial, a MP 1.124 institui à ANPD a criação de cargos, dos quais serão preenchidos por servidores ingressantes da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, observado o disposto na Lei nº 7.834, de 6 de outubro de 1989. Ademais, a Medida Provisória supra favoreceu a ANPD a detenção de prerrogativas especiais em seu regime, como uma maior autonomia administrativa, técnica e financeira, além de possuir patrimônio próprio cuja sede e foro fica no Distrito Federal.

Ao revés, a transformação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados provocou alguns murmúrios a respeito da constitucionalidade de tal ato. Tais discussões têm suscitado o fato de que segundo a Constituição Federal, a transformação de uma entidade governamental em autarquia só poderia acontecer por meio de decreto, e não por Medida Provisória. Assim consta nas alíneas do artigo 37, XIX da Constituição Federal:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)

XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;

Apesar da discussão ter sido levantada por alguns juristas, o STF já havia consolidado a tese que valida a criação de autarquia por meio de Medida Provisória. A tese foi discutida na ADI nº 4.029, da relatoria do Min. Luiz Fux, julgada em 2012, onde foi questionado se haveria urgência na criação de uma entidade autárquica que justificasse a edição de medida provisória. A ADI foi julgada improcedente, não impedindo que uma MP crie uma autarquia.

A ementa da ADI ficou com a seguinte redação:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI FEDERAL Nº 11.516/07. CRIAÇÃO DO INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. LEGITIMIDADE DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS SERVIDORES DO IBAMA. ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL. VIOLAÇÃO DO ART. 62, CAPUT E § 9º, DA CONSTITUIÇÃO. NÃO EMISSÃO DE PARECER PELA COMISSÃO MISTA PARLAMENTAR. INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTIGOS 5º, CAPUT, E 6º, CAPUT E PARÁGRAFOS 1º E 2º, DA RESOLUÇÃO Nº 1 DE 2002 DO CONGRESSO NACIONAL. MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS DA NULIDADE (ART. 27 DA LEI 9.868/99). AÇÃO DIRETA PARCIALMENTE PROCEDENTE. (…)

Por fim, apesar de definida pela MP 1.124 como autarquia de natureza especial, é relevante destacar que medidas provisórias possuem caráter provisório, ou seja, dentro do prazo legal de 120 dias para ser apreciada pelo Senado, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados é uma autarquia de natureza especial, no entanto, caso a Medida Provisória não seja avaliada pelo Senado, a MP caduca, e perde sua validade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Federal Nº 11.516/07. Criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Legitimidade da Associação Nacional dos Servidores do IBAMA. Entidade de classe de âmbito nacional. Violação do art. 62, caput e § 9º, da Constituição. Não emissão de parecer pela comissão mista parlamentar. Inconstitucionalidade dos artigos 5º, caput, e 6º, caput e parágrafos 1º e 2º, da resolução Nº 1 de 2002 do Congresso Nacional. Modulação dos efeitos temporais da nulidade (art. 27 da lei 9.868/99). Ação direta parcialmente procedente. Recorrente: Associação Nacional dos Servidores do IBAMA – ASIBAMA NACIONAL. Recorrido: Presidente da República, Congresso Nacional. Relator: Min. Luiz Fux, 08 de mar de 2012. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2595890>. Acesso em: 12 de jul de 2022.

PESTANA, Marcio. Os princípios no tratamento de dados na LGPD. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/artigo-marcio-pestana-lgpd.pdf>. Acesso em: 11 de jul de 2022

MEDEIRO, Fábio Mauro de.. Decaimento ou caducidade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/47/edicao-1/decaimento-ou-caducidade>.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 12 de jul de 2022.

BRASIL. Medida Provisória nº 1.124, de 14 de junho de 2022. Altera a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, transforma a Autoridade Nacional de Proteção de Dados em autarquia de natureza especial e transforma cargos em comissão. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 de jun. Seção 1, p.2. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608>. Acesso em: 12 de jul de 2022.

Brasil. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm> Acesso em: 07 de jul de 2022.